Há pouco tempo, na página 35 do número 23, dedicado a Geraldo Pereira, da Coleção Raízes da Música Popular Brasileira, da Folha de S. Paulo - com texto do jornalista Luiz Fernando Vianna, edição do crítico Carlos Calado e venda em banca de jornal -, foi publicada uma foto em que o excepcional compositor de "Sem Compromisso", "Pedro do Pedregulho" e "Bolinha de Papel" aparece ao lado de um ritmista não identificado na legenda. Tal foto é a primeira das apresentadas abaixo, e o ritmista em questão é o quase nonagenário Geraldo Barbosa, que aniversaria no dia 14 de setembro. Homem simples e de trato afável e generoso, nascido na pequenina Santana do Deserto e também mineiro como o retrocitado e ilustre xará, Geraldo Barbosa é dessas figuras da MPB, como tantos outros instrumentistas, que, apesar do relevante papel desempenhado em shows e gravações por anos a fio, não logram justo reconhecimento, por exemplo, em página de matutino, revista, compêndio pertinente, depoimento no MIS ou imagem de tevê. Logo ele, morador do Conjunto dos Músicos, em Inhaúma, que chegou ao Rio aos 30 anos de idade e por décadas trabalhou assiduamente em estúdio, tocando o seu pandeiro em companhia de Bezerra da Silva, Bucy Moreira, Luna, Eliseu, Marçal, Arnô Canegal e Raul Marques (também seu parceiro em vários sambas), entre outros, e ainda como detentor de um cobiçado caderno de telefones, já que também se destacou como arregimentador. Velho amigo do meu pai, sonoplasta, um outro Geraldo nesta história, com quem conviveu, nos anos 50, na Rádio Tupi, lembro-me dele, ao pandeiro, como espectador do "Rio Dá Samba", comandado na extinta TV Tupi por João Roberto Kelly, atuando regularmente, em meio ao bole-bole das mulatas dançarinas do programa, ao lado de outros músicos, como o trombonista Raul de Barros, o violonista Roberto Paciência (que fora dos Anjos do Inferno) e do também ritmista Paulinho da Aba, por exemplo, além do cantor Jamelão. Lá estava o Geraldo Barbosa, todo sábado à tarde, firme e forte, marcando presença no ritmo.
em disco antigo com gravação de sambas do Império Serrano por ritmistas e coro de pastoras, Mano Décio consta da autoria de "O Império Desce" com o pseudônimo Dom Carlos; |
Em agosto do ano passado, visitando-nos, pudemos conversar longamente, eu e meu velho, com ele, que também exercita, vez por outra, o seu engenho criador no artesanato da percussão e, nessa recente oportunidade, trouxe um guiro feito por ele com abóbora-d`água madura (rija e envernizada, parecendo de madeira), do qual tirou naturalmente aquele som em demonstração funcional. Geraldo, que, ainda nas Gerais, tocava sanfona de oito baixos e fazia o seu centro ao cavaquinho, tornou-se um ritmista autodidata em Petrópolis, para onde viajou aos 20 anos e onde morou até migrar para o Rio, trabalhando, inicialmente, na Cidade Imperial, como servente de pedreiro e, pouco depois, no Cassino Tênis Clube, dividindo-se entre o restaurante, na função de cumim, e o palco, integrando o conjunto Os Tangarás, em espetáculos lá promovidos pelo boa-pinta Carlos Machado, papa do nosso showbiz, que lá atuava com a sua orquestra. Com este, tempos à frente, já no Rio, voltaria a trabalhar como batuqueiro na boate Casablanca, na Urca. Do Cassino, ainda na dupla jornada entre pratos e talheres, de dia, e o pandeiro, de noite, Geraldo transferiu-se para o Quitandinha, onde acompanhou o conjunto Quitandinha Serenaders, e, em outro ponto turístico desse município serrano, o Hotel Cremeri, também com o seu palco para shows, conheceria o acordeonista Mário Lessa, que o incentivou a vir para o Rio e com quem, a princípio, na Churrascaria Tijucana, na Rua Marquês de Valença, formaria uma dupla, tocando uma vez por semana.
Em 1949, levado pelo compositor Luíz Soberano, que conhecera no ponto dos músicos em frente ao Teatro Carlos Gomes, na Praça Tiradentes, Geraldo pôde participar como músico da sua primeira gravação em disco, um 78 rotações da etiqueta Star, e, dez anos depois, como ritmista e passista do conjunto de Ataulfo Alves - trajado, aliás, como este, com muita elegância -, teve, na voz do miraiense, o seu primeiro samba gravado, "Chorei, Penei", feito em parceria com um pintor de parede, Agenor Lourenço, e realçado pelo arranjo de Lindolfo Gaya. Nesse mesmo ano, Geraldo e outros ritmistas-passistas apresentaram-se com destaque na revista "Bom Mesmo É Mulher", do maestro Vicente Paiva e do ator, bailarino e produtor Rosa Mateus, da qual saíam para a viração noturna como atrações de boates como Sacha`s e Au Bon Gourmet. Na arregimentação, trabalhou, sobretudo, na Copacabana Discos, tanto no Rio, com Ismael Correa e, depois, Moacyr Silva como diretores musicais, quanto em São Paulo, com Paulo Rocco, e, na composição - gravado por Jorge Veiga, Blecaute, Gilberto Alves, Roberto Silva e Genival Lacerda, entre outros - é autor, por exemplo, de um belo choro, "Maneiroso", gravado pelo grupo Chapéu de Palha e, com Mano Décio da Viola e Amaury de Oliveira, de um samba, "O Império Desce", que constou da trilha de um longa argentino-brasileiro de 1964, "Interpol Chamando o Rio", de Leo Fleider, e, dois anos antes, ouvido logo na abertura do filme, de "Garrincha, Alegria do Povo", de 1962, um longa documental produzido por Luiz Carlos Barreto e dirigido por Joaquim Pedro de Andrade.
Ainda nessa visita do Geraldo, pude deliciar-me com uma série de sambas compostos e lembrados por ele, na linha da chamada raiz e daqueles bem sincopados, todos inéditos. Por incrível que pareça, também inédito permanece até hoje um elepê todo gravado e não editado - do qual ele hoje gostaria de substituir duas ou três faixas - e que deveria ter tomado o rumo das boas lojas do ramo em 1973, pela Copacabana, com arranjos do maestro Pachequinho, ironicamente falecido na véspera da gravação. Das faixas deste disco participaram os seguintes músicos: Luiz Avellar e João Roberto Kelly (compadre do Geraldo) ao piano; Zé Carlos (ex-noneto Abolição), à guitarra e ao cavaquinho; Maurício Scarpelli, ao baixo; Roberto Marques, ao trombone; Netinho, ao sax alto; Moacir Marques (Bijou), ao sax tenor; Aurino, ao sax barítono; Newton Rodrigues, ao pistom; Fernando Pereira, à bateria, além do próprio Geraldo, ao pandeiro e à maraca, e o também baterista Jorge Gomes (filho de Risadinha do Pandeiro, que atuou com Jacob do Bandolim e Waldir Azevedo nos áureos idos do rádio) abrilhantando a percussão. Um disco que bem poderia sair do ineditismo ou, quem sabe, estimular uma outra produção com o próprio Geraldo, lúcido, com boa memória e cantando bem, ele que é, por toda a sua trajetória e vivência no meio musical (parceiro ainda de Wilson das Neves e de outro Geraldo talentoso, o Vespar), um manancial de rica informação sobre o desenrolar de fatos na nossa música popular. Fica a sugestão, portanto, a quem é do ramo. Seriam flores em vida, merecidíssimas, a quem, na marcação, sempre soube segurar o samba - de acordo com a palavra de ordem do saudoso Osvaldo Nunes em "Ogunhê" -, sem deixá-lo cair.
Um bom dia a todos. Muito grato pela atenção.
Um abraço,
Gerdal
Olá, meu nome é Juliana, sou médica geriatra e trabalho na UNATI/Uerj. Queria dizer que adorei o post sobre a vida do Geraldo Barbosa que é nosso paciente e uma pessoa realmente incrível. Ele relamente possui uma memória invejável e experiência de vida indescritível! Compõe até hoje e possui muita sede de vida.
ResponderExcluirFica aqui a minha homenagem a ele!
Boa noite. Parabéns pela publicação sobre o Geraldo Barbosa, onde pude encontrar a citação do nome do meu Tio-avô Mário Lessa, acordeonista com quem fez dupla na Tijuca.
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