terça-feira, 12 de junho de 2012

Tia Doca – A saudade da pastora da Portela


    




    No início de 82, ou seja, há pouco mais de trinta anos, fui convidado pelo Mauro Diniz para
ir ao seu pagode, em Oswaldo Cruz. Era uma tarde de sábado. Eu morava ali ao lado, em
Madureira. Na primeira informação que pedi veio a dica: “olha, meu filho, fala com aquela
senhora ali, porque ela sabe tudo de samba e mora aqui há anos”. Fui então perguntar à antiga moradora aonde que ficava o Pagode da Beira do Rio, que era organizado pelo Mauro, por seu parceiro, o também compositor Adílson Victor e pelo amigo Cabral, dono do terreno. E a jovem senhora me ensinou como chegar. Lembro que no final ela me disse: “Vai lá, meu filho. Mas não fica com medo, porque é na beira do rio, mas o samba é muito bom”. Eu ri, agradeci e fui pro samba. E nem imaginava que acabara de conhecer uma das grandes figuras do samba. Eu acabava de conhecer a Dona Jilçária Cruz Costa, mais conhecida nas quadras, nos terreiros, nos palcos e estúdios de gravação com a Tia Doca. Em pequena era chamada de Xandoca, Doquinha e, por fim, Doca. A Tia Doca da Velha-Guarda da Portela.


    E este ano de 2012 seria um ano de festas para comemorar em 20 de dezembro os seus 80 anos. Seria, pois infelizmente Tia Doca se foi antes. Na tarde de 25 de janeiro de 2009, depois de já ter recebido alta do CTI do Hospital do IASERJ, no Centro do Rio, onde estava por ter tido um AVC, ela sofreu um infarto e não resistiu. E se foi, deixando uma lacuna difícil de ser preenchida no coração de quem a admirava e no próprio samba que era a sua vida.


    Então, a hora é de lembrar desta pastora, desta partideira, que tinha orgulho em integrar
a Velha-Guarda da Portela. Mas nasceu na Rua Pescador Josino, na Serrinha. Foi morar em
Oswaldo Cruz e, casada com Altair de Araújo, filho do compositor Alvarenga, afilhado do
bamba Natal da Portela e mascote da escola, Tia Doca foi conhecer a quadra, os ensaios,
gostou e desfilou pela primeira vez no carnaval de 1953, como destaque.


    Após conhecê-la naquela rápida conversa no portão de sua casa, não demorou muito para
que voltasse. Uma vez ela foi surpreendida por uma festa de aniversário. E deu a maior mão
de obra para tirá-la de casa. Mas conseguimos. E foi ali que eram realizadas as reuniões para
definir o repertório do que viria a ser o LP Raça Brasileira, que lançou Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Mauro Diniz, Pedrinho da Flor e Elaine Machado. Foi meu segundo disco como coordenador de produção, sob a direção de meu mestre Mílton Manhães. E, a partir deste disco, Tia Doca passou a frequentar mais os estúdios de gravação. Foi corista em disco como os de Zeca, Jovelina, Mauro, Paulinho da Viola, Dominguinhos do Estácio, Beth Carvalho e Marisa Monte, entre outros.


    Tia Doca tinha a mania de colocar nome em tudo que comprava com os cachês de cada
trabalho. Em sua casa, a geladeira tinha o nome do artista do disco que gravou, por exemplo. E assim por diante. Uma jovem senhora bem sapeca, também gostava de colocar apelidos. Para minha filha Andressa, que cresceu frequentando os pagodes da nova tia, colocou 24 Horas no Ar. É que a pequena não parava quieta, fosse na Associação de Oswaldo Cruz ou no terreno da Rua João Vicente, em Madureira, onde até hoje acontece o pagode, hoje sob o comando de um de seus filhos, Nem.


    O Pagode da Tia Doca, que começou em abril de 1980, passou a ser uma fonte de renda desta que foi uma das principais pastoras da Portela. Até se tornar a cantora que foi, trabalhou como fiandeira do Moinho Inglês e da Mavília, duas grandes Fábricas de Tecido. Era em seu pagode que muitos nomes representativos do samba deram seus primeiros passos, como Dudu Nobre, Zeca Pagodinho, Luis Cláudio Picolé e Márcio Vanderlei, hoje um dos principais músicos e um competente luthier, fabricando banjos. Foi no Pagode da Tia Doca que Netinho, na época do Negritude Júnior, tocou repique de mão. Que Beth Carvalho levava à loucura músicos e compositores cada vez que chegava na mesa do pagode.


    Mas, bom samba à parte, que também já teve na mesa o cavaco de Jorginho Bombom e o
surdo do Tião, o charme vinha da cozinha. Vinha das enormes panelas onde ficava a famosa
sopa de ervilha, feita pela Tia Doca. Muitas e muitas vezes a sopa acabava antes mesmo do
último samba a ser cantado. Servida em copos descartáveis, a venda da sopa era responsável por filas e filas. Excelente cozinheira, Tia Doca não gostava do trivial. Por mais que também soubesse fazer um arroz com feijão, bife e batata frita, sempre preferiu as chamadas comidas pesadas, como feijoada, carne seca com abóbora, tripa á lombeira ou um bem temperado angu a baiana.


    E assim Tia Doca cumpriu sua missão por aqui. Sua missão no samba, ajudando a implantar a cultura dos pagodes de fundo de quintal, junto com o Pagode do Arlindinho, na época em Cascadura, o Pagode da Beira do Rio e outros tantos que sonorizavam as noites cariocas nos anos 80 e que vem atravessando décadas e décadas. E passou o bastão para seu filho Nem, que passou a ser o responsável pelo Pagode da Tia Doca.


Marcos Salles

Um comentário:

  1. Parabéns pela matéria Marcos Salles,grande tia Doca,eu era muito fã,sinto muitas saudades dela.
    Show!!!

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